Carta de uma idosa acamada à sua enfermeira
Hoje de manhã ela chegou diferente. Não sei, mas estava mais triste que o comum. Geralmente ela chega sorridente, brincando e fala comigo. Me chama pelo nome. Dificil encontrar pessoas que me chamam pelo nome, geralmente as pessoas chegam, colocam as mãos na minha perna e me tratam como um corpo indigente. Dá uma vontade de gritar: Ei, estou aqui e tenho nome.
Aos poucos notei que ela foi se rendendo, me lançou um sorriso e disse: - Hoje vamos tomar uma chuverada. O que? Chuverada? Demorada? Depois do início da minha doença e ficar acamada por causa do Alzheimer essa era a primeira vez que ia sentir a gostosa sensação da água abundante e morna do chuveiro. Geralmente é so a duchinha, um paninho. Será?
Com cuidado ela tirou minha roupa, me colocou na cadeira e ligou o chuveiro. Senti a água correr farta pelas minhas costas, molhou meu cabelo, me cobriu por inteiro. De olhos fechados me lembrei de como gostava de passar um tempo debaixo da ducha. Era um tempo só meu, sem filhos, marido e responsabilidade, um tempo só meu.
Lavou meus cabelos, fez massagem nas minhas costas e nos meus pés, fiquei mais um tempo curtindo meu chuveiro. Até esqueci o quão desconfortável é a cadeira de banho. Quem faz essas cadeiras deveria passar ao menos uma hora sentado nelas para saber o que sofro.
Terminou meu banho, me arrumou, perfumou, e, apesar das minhas reclamações não polpou creme hidratante. Ela sempre faz isso.
Mas havia algo errado com ela hoje.
Fez meu suco, caprichou na minha sopa, e a sobremesa estava uma delícia.
Fechou a janela, cobriu-me com um lençol e me pediu que dormisse um pouco. Mas eu estava incomodada, Quis falar mas as palavras não saiam, quis perguntar, oferecer os conselhos que só a experiência que vem com a idade me permitem. Fiquei revoltada, o AVC me tirou a capacidade de andar, falar, mexer completamente. Ela ficou ali do meu lado velando meu sono.
Então mais tarde na hora do lanche ouvi quando ela comentou com meu marido que ficava revoltada por meus filhos não virem me visitar. Que era apegada aos avós e que estava triste pela minha situação.
Então me lembrei de quando eles eram crianças, das noites insones velando o sono, das gripes, quedas, travessuras. Da felicidade e orgulho no casamento, formatura e no nascimento dos netos e netas.
Hoje, aqui nessa cama, vejo os dias passarem longos rogando a deus que me leve. Do meu lado meu marido, parece que o tempo não diminuiu nosso amor, mudou de forma, mas nao de intensidade.
Ela me confidenciou outro dia que não se sente amada, perguntou o que eu havia feito para conquistar o amor da minha vida. Com os olhos quis lhe transmitir que cada um tem o seu destino e que, com certeza ela deveria ter sido amada, muitas vezes so que de maneiras diferentes àquelas que estava acostumada.
Chegou a hora dela ir, sei porque vejo a noite chegando pela janela, o friozinho que percorre minha pele, mas ela veio ao meu quarto, alisou meus cabelos, cobriu minhas pernas e me disse: - até amanhã.
Eu sabia que ela ainda estaria comigo por algum tempo e, de certa forma, sei que Deus nos colocou uma no caminho da outra; ela no meu para me proporcionar dias agradáveis e ser tratada como uma pessoa viva e não uma moribunda como a maioria Eu no dela, para ensinar-lhe a linguagem da alma, a sutil linguagem de falar com o olhar.
Até amanhã.